a pintura de
JOÃO BONETTI -
um depoimento pessoal
Ralf Rickli
educador e escritor
J.Bonetti em abril de 2006
Em 1990 escrevi acertada e erradamente sobre a arte de João:
"Se a um olhar superficial a pintura de João Bonetti poderia parecer ingênua, o olho atento reconhece aí um surpreendente refinamento conceitual. Na verdade João não pinta objetos, e sim as imagens anímicas provocadas pelos objetos.
Na fluidez com que se interpenetram diferentes universos de imagens, figurativos e abstratos, tem-se um reflexo dos próprios processos internos da mente. Com isso, sua expressão se aproxima de um surrealismo , mantendo porém uma autenticidade ou verdade interior que o distingue do surrealista-poseur, do produtor de insólito premeditado ou por encomenda
Um tal refinamento conceitual, realizado através de um incrível senso espontâneo da cor e da composição espacial, faz da pintura de Juan Bonetti um fenômeno incomum, digno de atenção sob qualquer aspecto."
Em 2004, com a vivência acumulada dos quase-50, tenho uma coisa a corrigir na apresentação acima: já não me parece possível que a pintura de J.Bonetti, nem mesmo a inicial, pareça ingênua a nenhuma pessoa dotada de percepção e inteligência.
Conheci João Bonetti em 1985 em Curitiba, quando inventei de aprender a afinar pianos. Nascido no interior do Paraná de uma família de agricultores enriquecidos no boom do óleo aeronáutico de menta - mas que, como tantos outros, tinham sabido cair mais rápido do que subiram -, João e um irmão trabalhavam na extinta fábrica Essenfelder. Pouco depois sumiu sem deixar notícias.
Pelo meio de 1986 reapareceu: tinha andado pela Argentina e Uruguai, vivendo como punk. A vida das ruas de Buenos Aires tendo sido parteira de seu senso de identidade como adulto, Bonetti passou muitos anos sentindo-se mais Juan do que João, e foi assim que assinou boa parte dos seus trabalhos. (Hoje, num compromisso entre as duas formas, prefere assinar J.Bonetti).
Foi aí que comecei a ver seus desenhos: originais e interessantíssimos, porém traindo uma tensão interior quase insuportável. E foi assim que comecei a saber de sua história pessoal, dos inacreditáveis maus-tratos físicos e psicológicos atravessados da gestação até a adolescência - e que lhe haviam legado um forte tremor nas mãos - sem porém conseguir derrubar a altiva certeza de si de um Leão.
Às primeiras sugestões de que tentasse prestar atenção nos traços menos dolorosos da vida, Juan reagiu com indignação. Até que um dia apareceu com uma pequena pintura - pelo menos de meu conhecimento a primeira - de uma garça branca contra um radiante nascer de Sol. E a partir daí, mesma continuando a atravessar um inacreditável catálogo de desafios e dificuldades, a vida de Juan nunca mais deixou de ser a cores.
Em 1988 eu estava vivendo no Bairro Demétria em Botucatu quando Juan apareceu - e por lá ficou alguns anos. Com isso tive a oportunidade de acompanhar a criação de suas supreendentes técnicas de trabalho com tinta acrílica, que com o pincel geravam efeitos que todo mundo atribuía ao aerógrafo. Não era incomum, nesse tempo, eu dormir e acordar 8 horas depois sem que Juan tivesse largado os pincéis. Naquela época produzia camisetas únicas, irrepetíveis, que através dos estagiários e visitantes do Projeto Demétria começaram a se espalhar pelo Brasil e Europa.
Botucatu trouxe ainda a oportunidade de estudar a técnica japonesa do sumi-ê e a pintura baseada na teoria das cores de Goethe, e as primeiras experiências com óleo depois de anos refinando o domínio do acrílico.
Em 1991, finalmente, um universo mais amplo de olhares teve a oportunidade de conhecer o trabalho de João, com exposições em Botucatu (no Museu de Arte Contemporânea) e na Alemanha, para onde levei alguns dos seus trabalhos, em Witten-an-der-Ruhr e na tradicionalíssima cidade universitária de Tübingen. São dessa época as fotos e programas de exposição que conservei nos meus arquivos.
Só vi Juan uma vez desde fins de 1991, quando se instalou na cidade de Avaré. Interior de São Paulo. Soube de longe dos anos de calmaria com a companheira e a filhinha Letícia (nome escolhido com toda consciência do seu significado “alegria”), com o paciente trabalho em restauração de móveis (que cheguei a vê-lo executando em um hotel de São Paulo, creio que em 1995), com a produção de molduras e montagem de telas, culminando na ousada criação das telas circulares.
Só recentemente fiquei sabendo que a limitação e a dor tinham apenas dado trégua, e não desistido de acompanhá-lo: o acidente que teve a crueldade de, de um pintor, roubar nada menos do que um olho - com a visão restante também comprometida pelos problemas de tipo parkinson que nunca lhe deram trégua.
E, como em tantos outros casos, parece ter sido justo a limitação quem estreitou de novo os laços de Juan com a pintura. Contemplando seus últimos trabalhos, de que me enviou fotos pela internet, o que me ocorre de imediato é adaptar as palavras de Caetano Veloso a respeito do samba:
a arte é mãe do prazer
a arte é filha da dor
a arte é o grande poder transforma-dor.
Não que a tal arte caia do céu como doação, milagre gratuito! Espírito fazendo-se carne... conhecendo e assumindo todas cargas e limitações dessa carne... com todos os esforços içando-a de volta à transcendência... e deixando desse processo um testemunho, um registro, em som, em palavra, em cor... - é assim que eu entendo essa atuação maior da arte nas vidas humanas, famosas ou não.
E é assim, não menos, que eu vejo a arte do João.